Primeiro vendeu a mulher que era jeitosa e boa cozinheira.
Foi a mais difícil de vender, já que era tão boa cozinheira e dobrava a roupa dele como ela só. E cuidava dos afazeres da casa. Era submissa e limpa. Só mulher limpa servia para a lambança toda que ele fazia na cama, na mesa, em frente à televisão.
Depois foi fácil vender as duas filhas já moças a um especulador que colecionava virgens. Enfim, vendeu o menino, que nasceu mulato como a mãe, para um casal dinamarquês que se convertera ao cristianismo neopentecostal após uma overdose de drogas. “In Jesus we trust”.
Transcorrido o susto, passada a epifania da Virgem Maria em baixo da ponte sob o lago gelado, os gringos acharam prudente fazer o bem sem olhar a quem. E levaram o mulatinho assustado com eles para bem longe do pai, que pegou o cheque e entregou o menino nu e remelento.
Fernando Alex dos Santos Souza era a própria maldade encarnada. Traçou seu destino de matador aos cinco anos de idade no dia em que pegou um sapo em suas mãos, olhou fixamente para o animal e com precisão cirúrgica, lhe arrancou delicadamente os dois olhos com a tampinha de coca-cola encontrada no chão, deixada por um cúmplice incidental.
Em menos de meia hora o anfíbio indefeso, quase exangue, parara de agonizar e aceitara a morte enfim, levada até ele por meio de dois buracos sem olhos que gotejavam um sangue ralo e frio.
O primeiro impulso de matar se dera às onze horas e cinco minutos do dia doze de um janeiro quente do ano de 1974 numa favela do Rio de Janeiro para onde Fernando Alex migrara com o pai, a mãe, sete irmãos e a avó tísica.
Na vinda para o Rio, nos cafundó da Bahia, Severina, a avó, delirava com o febrão e gritava feito mulher prestes a desprenhar.
Trataram de amarrá-la ao pau de arara que chacoalhava na estrada. Taparam sua boca. Ao seu lado, um bode que era só pele e osso e um cachorro doido. Dizem na família que o tal cão raivoso também foi comido na hora que a fome bateu desalmadamente pela segunda vez.
Já era Minas Gerais quando a anciã de quarenta e sete anos foi encontrada sem vida com o pescoço pendendo para o lado. Umas órbitas profundas e descarnadas de morta enterrada há pelo menos sete dias. Um rosto tão enrugado que parecia virado pelo avesso.
Ainda era Minas Gerais quando Fernando Alex viu o pai arremessar a própria mãe no meio da estrada. A cabeça da velha rolando, acabou presa na roda do carrão importado do pagodeiro que passou como um foguete do lado da camioneta que arrastava duas famílias para o Rio de Janeiro e três para São Paulo.
Quarenta anos após o episódio macabro, na frente do espelho, a pele de Fernando era viscosa e dura como uma máscara de borracha. Os olhos piscavam sobre umas pupilas negras, estáticas e brilhantes que não fitavam nada.
Era setembro quando notou certa manhã o nariz borrachudo descamando. Com unhas impecavelmente limpas e cortadas, arrancou a pela fina do nariz sem dar a menor importância ao fato.
Aos quarenta e dois anos e três dias ele era um homem bem sucedido. Possuía belas mulheres. Era um tipo atlético, viril, rico e contabilizava mais de cinquenta mortes nas costas. Mas vez por outra, lembrava da avozinha tísica.
- A cabeça da velha rolou e ficou presa na roda! - Disse soltando uma gargalhada seca e sacudindo o relógio de ouro, enquanto a garota de programa, entretida com a atividade abaixo da cintura de Fernando, engasgou.
A moça trabalhadeira não dava conta de continuar o digno serviço. Não tanto pela notícia da morte da avó do cliente, alardeada com tamanha animação pelo próprio. Era o gosto ácido que começou a sentir na língua: - Você tem as mãos e os pés gelados, Fernandinho!
Ele, que havia sido forjado sem amor, só atinava para o que não lhe prestava mais. E neste momento a língua dela já não prestava pra nada. E como falava sem parar! Já que ele não sentia, por que ela haveria de sentir? Assim, sem cerimônia, o desalmado cortou a língua de Stefany, que saiu desembestada pelos corredores. Como não podia gritar, corria. Há testemunhas de que a pobre perambula nua por recantos inóspitos da cidade.
Numa quarta-feira de outubro, véspera de uma chacina orquestrada na Comunidade do Muquiço, o bandoleiro abriu os olhos embaçados. Sentia-se pesado e cambaleante. Tudo era turvo ao mirar de sua cobertura duplex para o calçadão da Vieira Souto. Tropeçou no criado mudo, soltando um grito aflito de dor: Urebe! Urebe!
- Meu Deus, o que é isso?! - Clamou a besta fera. Só pode ser um sonho! E praguejava: -Resolveram se vingar agora? Não têm mais o que fazer? Já não despachei vocês para o inferno?
Fernando Alex decidiu se arrastar até o banheirão todo no mármore de Carrara pago com o sangue dos inocentes que agora tinham fome de vingança. Impossibilitado de se pôr em pé, pulou até à pia e agarrou-se ao mármore com as ventosas surgidas nas pontas das falangetas. Com suas patas repugnantes tocou a pele escamosa, a papada gorda e acinzentada, os olhos enormes, esbugalhados, de um estrabismo divergente. Urebe! Urebe! Fernando Alex coaxava.
O pesadelo não queria mais acabar: - Meu Deus, no que me transformaste! Por que não me mataste? Eu me entrego! Eu vou até à polícia e confesso todos os meus pecados. Mando sustar o cheque de todos eles! Faço tudo o que queiras, ó pai eterno!
Qual o quê! Fernando Alex, aquele mesmo que havia travado o seu destino como o mais cruel dos matadores, implorava agora como uma criança indefesa pelo perdão de Deus ao se ver metamorfoseado num abjeto sapo cururu de 1.80 m de altura.
Saiu pelas ruas trocando as pernas, ou melhor, as patas. Não via ninguém. O deus da maldade era só uma réplica patética de um carro alegórico do terceiro grupo das escolas de samba do Rio de Janeiro.
O céu desabou a chover tão forte, arrastando árvores, prédios, pessoas e sapos gigantes. Fernando Alex, quase atropelado por um caminhão da comlurb, por uma espécie de milagre começou a encolher, escondendo-se dentro de um bueiro. Era chuva de verão com arco-íris e pessoas bestas e felizes apontando para o céu.
Uma bola cor-de-rosa rolou. Ouviram-se passos de criança correndo: - Vem pra cá menino, tem bicho nesse lugar!
- Não vejo nada aqui mãe! - disse Rafinha, um menino de cabelo louro encaracolado, um autêntico anjo caído, gordinho e de olhos azuis.
O menino sorriu, mostrando os dentes e as pupilas negras e gigantes que não fitavam nada.
- Não tem nada aqui, mãe, nadinha de nada! Disse o anjinho de cinco anos de idade segurando uma tampinha de coca-cola na mão. Nada, nada, que coisa mais chata!
Com olhos vidrados de não enxergar, Fernando Alex lembrou-se da única lição que aprendera na escola pelas mãos da linda professora que usava saia de normalista e era dona de uma caligrafia perfeita.
Amphibia: significado de vida dupla.